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DE CAXIAS A ALVALADE
"Os responsáveis pela gestão danosa desportiva desta época, causa principal desta lamentável situação, sabemos quem são"
11 Abr 2023, 12:55

Cada um de nós tem, na sua vida dedicada ao nosso clube, histórias que, além de permanecerem para sempre na nossa memória, revelam o nosso incondicional amor que lhe dedicamos e trazemos no coração. Também eu, que já levo mais de 80 anos de existência e quase 74 de sócio, tenho o que contar quer aos mais antigos e, talvez por redobrada razão, também aos mais novos. Nas vésperas do 25 de abril e da nossa conquista da liberdade entendi que seria interessante contar-vos esta história que tem o seu quê de loucura e paixão próprias da juventude.

Entrei na Faculdade de Medicina de Lisboa no ano letivo de 1961/62. Em outubro de 61, mais precisamente. Desde cedo tive atividades extraescolares nomeadamente na Associação dos Estudantes da Faculdade de Medicina. Fazia, portanto, e por inerência dessas funções, parte de uma organização de cúpula dos estudantes denominada RIA (Reunião Interassociações), à data presidida por Jorge Sampaio, sportinguista ferrenho e recém-licenciado em Direito. Foi agendado para o dia 24 de março de 1962 o início das comemorações do 1º Dia do Estudante, imediatamente proibido pelo governo de Salazar. Iniciaram-se, então, as perseguições pela polícia política e pelas forças especiais da PSP, a famosa Polícia de Choque, com cargas, espancamentos e detenções de estudantes e ocupação das instalações universitárias. Muito mal passámos nesses atribulados dias de contestação e de luta. Foi, entretanto, decretado pela RIA, um luto académico e uma greve nacional às aulas, que teve uma adesão maciça e o apoio e a solidariedade de vários professores universitários e de grande parte da população. Dias depois foi aprovada em plenário uma greve de fome na cantina universitária, em frente do Hospital de Santa Maria, com início a 9 de maio. Já lá vão 61 anos! Dois dias depois, estando centenas de estudantes ali reunidos, num gesto de solidariedade com os colegas em greve de fome, eis que fomos surpreendidos com um cerco a essas instalações por dezenas e dezenas de polícias armados, trajando bastões, pistolas, capacetes e viseiras. Tinham soado as 3 horas da madrugada. Recebemos, um a um, ordem de prisão e fomos obrigados a permanecer largo tempo sentados no chão na sala maior das refeições. Mais tarde, já próximo do raiar do dia, fomos sendo introduzidos em 26 autocarros da Carris e levados até diversos estabelecimentos prisionais. A mim, por ser dirigente académico, coube-me fazer parte do grupo dos restantes dirigentes identificados e dos grevistas tendo-nos calhado em sorte (?) o forte-prisão de Caxias. A maior parte dos estudantes presos nessa noite foi sendo libertada nos dias seguintes. Eu e alguns dirigentes mais pudemos sair, depois de exaustivas identificações e interrogatórios, no dia 27 de maio, domingo, depois do almoço. E ainda bem porque…

Nesse domingo, o nosso Sporting jogava em Alvalade. E não era um jogo qualquer. Era um Sporting-Benfica que podia decidir o título, uma vez que estávamos pontualmente empatados com o Futebol Clube do Porto que jogava essa última jornada do campeonato em Guimarães. Já não me lembro se a tarde estava soalheira ou não. Sei que de Caxias fui direitinho ao meu lugar cativo em Alvalade decidido a só avisar a família da minha libertação após o jogo. E sei também que o estádio estava a transbordar, com gente até na pista de ciclismo, com o colorido dos dias de festa, de verde e branco vestidos, enfeitado com serpentinas e quadradinhos de papel com as cores do nosso clube. Nem era preciso ganhar desde que o Porto não vencesse. Mas, pelo sim, pelo não, todos nós queríamos a vitória. Recordo a visão que tive desde o meu lugar, visão que ainda guardo, de uma multidão entusiástica e eufórica, de pé, braços no ar, aplaudindo a entrada em campo da nossa equipa: Libânio; Lino e Hilário; Perides, Lúcio e Fernando Mendes; Hugo, Figueiredo, Diego, Geo e Morais. Inesquecível! Era a festa do almejado título. Juca era o treinador substituindo o demissionário Otto Glória. Três golos nossos na primeira parte: o 1º, aos 20 minutos de jogo, por Morais; logo a seguir Hugo faturou antes da meia- hora, Eusébio reduziu e um autogolo de Costa Pereira, o famoso guarda-redes encarnado, a cinco minutos do intervalo, fixou o resultado. Assim, os segundos 45 minutos foram de apoteose e celebração com uma exibição de gala e verdadeiramente inesquecível. Vencemos 3-1. A tradicional, à época, invasão de campo não se fez esperar. O apito do árbitro despoletou os impacientes adeptos. Valeu tudo. Os jogadores de ambas as equipas (naquele tempo era assim) não tiveram como fugir. Alguns conseguiram regressar aos balneários em cuecas, outros nem isso! Outros tempos. E que tempos, meu Deus! Já agora referir que o Porto perdeu em Guimarães e, portanto, o título, o nosso 15º título, ficou em Alvalade para enriquecer ainda mais a nossa brilhante história e o troféu tomou lugar no nosso já bem recheado museu.

Dia do Estudante, cargas da polícia, greve de fome, prisão em Caxias, tudo isso ficou para trás. A recompensa desses dias muito atribulados e penosos foi aquela maravilhosa tarde que vivi em Alvalade, e logo frente ao rival Benfica, da conquista de mais um título de campeão nacional. Há factos que a gente nunca mais esquece na vida. Por mim, estes que acabo de vos narrar, estão e ficarão para sempre gravados na minha memória e na minha alma. E ensinaram-me também, aos 20 anos de idade, que a vida nem sempre é um passeio numa alameda de flores; não, nada disso, tem escolhos, tem obstáculos, tem momentos menos bons, duros, marcantes. Há-que enfrentá-los e vivê-los. E há sempre outro dia, há sempre uma janela que se abre quando uma porta nos é fechada e nos interrompe o caminho, há sempre uma esperança que nos incita a prosseguir e não parar nem desistir. Há “Caxias”, houve “Caxias”, mas também há “Alvalades” e houve e vai haver sempre “Alvalades”, porque, desde criança, Hoje e Sempre Sporting.

Mas este mesmo sócio otimista e cheio de fé e esperança não pode calar aqui a sua frustração pela perda de pontos no passado dia 5 frente ao Gil Vicente. Esse desaire, somado a alguns outros no passado, afasta-nos definitivamente, estou convencido disso, do 3º lugar e, portanto, da hipótese (em que eu acreditava) de estarmos presentes na Champions na próxima época. E esse facto pode decidir muita coisa no futuro do Sporting. Sem os milhões da Champions League, a ou as próximas épocas vão ser, certamente, e Deus permita que este cenário não aconteça, preocupantes e mesmo desprestigiantes frente aos nossos mais diretos rivais, com risco até de podermos perder, sabe-se lá por quanto tempo, o estatuto de um dos 3 grandes do futebol nacional! Em vésperas dos nossos 117 anos de existência seria (será?) um rude golpe. Os responsáveis pela gestão danosa desportiva desta época, causa principal desta lamentável situação, sabemos quem são. A nossa estrutura do futebol profissional não poderá assobiar para o lado; tem mesmo de assumir os erros cometidos e as suas eventuais consequências a curto e médio prazo. Porque, a não ser assim, põe em causa também a sua legitimidade.

Saudações Leoninas!

Abril de 2023
João Trindade – Sócio nº 232

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