summary_large_image
DO ADVERSÁRIO AO INIMIGO; DA PAIXÃO AO ÓDIO
Deveríamos fazer alguma coisa contra esta situação a que chegámos. Isto, se queremos ser diferentes e melhores do que os demais.
Imagem de destaque10 Nov 2022, 14:50

Não gostaria de escrever este texto. Porque revela a negação e a conspurcação de uma das atividades mais antigas, mais belas e dignas da humanidade que é o desporto.

O nascimento dos Jogos Olímpicos que data do séc. VIII a.C. e que se realizaram sempre na Grécia até ao séc. V d.C. terá sido a primeira manifestação minimamente organizada de uma atividade multidesportiva com a participação de centenas de atletas que competiam em várias modalidades. Já no séc. XIX, o Barão Pierre de Coubertin fundou, em 1894, o Comité Olímpico Internacional. Este movimento olímpico definiu-se pela chamada Carta Olímpica onde ficaram consignadas as regras e os comportamentos que todos, em todo o mundo, deveriam cumprir. Talvez o mais importante do espírito olímpico e desportivo seja, desde o início, quero crer, a lealdade na competição e o respeito pelo adversário.

Seria assim que deveria ser em todas as atividades desportivas, em todas as competições, em todo o mundo e em todas as épocas. Sabemos que, infelizmente, não foi sempre assim e não o é de todo hoje. O homem perverteu o espírito, os interesses individuais e coletivos falaram mais alto, o dinheiro entrou no desporto e transformou-o num negócio muitas vezes escuro e sujo. Infetados foram os grandes eventos mundiais sobretudo no futebol profissional, com as candidaturas a negociarem e a comprarem as suas organizações e até as olimpíadas não ficaram imunes a tais epidemias. Todos nós assistimos a estas transformações, impotentes e, estou certo, desgostosos e infelizes. E temo que pouco possamos fazer para inverter esta infeliz e detestável situação.

Vem isto a propósito do que se passa de reprovável no nosso país e, infelizmente, tanto por esse mundo fora. Não me saem da memória, não consigo esquecer, não quero calar a revolta, não se me apazigua o desgosto, não entendo, não aceito, não me conformo com a morte de mais de 170 pessoas, das quais 32 crianças, da tragédia do dia 1 de outubro passado, num estádio de futebol em Malang, na Indonésia, fruto do confronto entre adeptos de dois clubes ditos rivais, após invasão do terreno do jogo e a batalha entre eles e as forças de segurança (?). Não é possível que isto tenha acontecido, não é possível que isto volte a acontecer onde quer que seja! Já passou mais de um mês sobre este dramático episódio, eu sei; mas volto ao assunto para que não o esqueçamos. Não podemos ignorar, não podemos tocar a vida para a frente nos mesmíssimos moldes. Estaremos, nesse momento, a regredir e a voltar aos tempos de Nero, das arenas de Roma, quando os escravos enfrentavam leões para gáudio da assistência. É para isso que queremos levar o desporto e mais particularmente o futebol? Cada um de nós que assuma as suas responsabilidades e grite NÃO, não iremos por aí!

Também os recentes episódios nos estádios de 2 clubes portugueses revelaram a intolerância e a fúria de adeptos contra o facto de 2 crianças, acompanhadas dos pais, envergarem camisolas dos clubes em confronto. Digo bem: em confronto, na pior aceção do termo. Não devemos esquecer as lamentáveis agressões entre jogadores, dirigentes, agentes da segurança e funcionários do clube acontecidas no estádio do Dragão num jogo Porto/Sporting em 20 de agosto passado. E que dizer do hábito que se arreigou nas nossas claques de insultarem em coro a mãe dos guarda-redes sempre que estes pontapeiam a bola para o campo contrário? Mas com que direito? Em nome de quê? Não, certamente, em nome do grande amor clubista que julgam estar a expressar desse modo. Uma vergonha! O disparo de tochas para o relvado, os incêndios das cadeiras, as suas destruições e arremessos contra outros adeptos, são atos cada vez mais frequentes nos nossos estádios. Assistimos também, em quase todos os jogos, a cenas de entradas violentas contra os adversários, impiedosas algumas delas, desrespeitando colegas de ofício, ofendendo o espírito da competição e pondo até em risco a integridade física de quem está no exercício da sua profissão. Raros são os jogos que não terminam com reuniões em torno dos juízes, tentativas de agressões entre os jogadores, treinadores a invetivarem os árbitros de forma insultuosa, cenas repetitivas e reprováveis. Estas ofensas verbais e físicas, a que junto todas as espécies de simulações que se fazem no sentido de enganar os juízes, deveriam ser, na minha opinião, equiparadas e, eventualmente, apreciadas e julgadas como crimes. A pedagogia da educação dos seus intérpretes não tem resultado e não resultará nunca. Nesses casos, justificar-se-ia uma punição exemplar. Mas para isso, teria de haver uma autêntica revolução não só das leis bem como dos organismos disciplinares que temos. Todos os clubes, (e porque não o Sporting tomar essa iniciativa na Liga?), deveriam chegar a acordo em mudar tudo, incluindo a moldura penal, o valor das penalizações e os prazos máximos de tomadas de decisões. Os Conselhos de Disciplina deveriam ser constituídos por juízes independentes, a trabalharem a tempo inteiro e em exclusividade, devidamente remunerados, obviamente, para que tivessem condições de terminarem as averiguações e exararem as penalizações dentro de prazos não superiores, por exemplo, a 60 dias. E que o valor da pena fosse dissuasor da indesejável repetição das ações reprováveis e indignas da prática desportiva. Talvez não saibamos que caminho deveremos tomar, mas, sim, sabemos que caminhos não devemos continuar a trilhar. O desporto teve a sua época. A época agora, e cada vez mais, é a do negócio feroz, implacável e quantas vezes sem escrúpulos. Por mim, lamento.

E, para terminar, direi que gostaria imenso que no meu clube, o clube que amo desde que me conheço, e amo Hoje e Sempre, o Sporting, assim não fosse. Deveríamos fazer alguma coisa contra esta situação a que chegámos. Isto, se queremos ser diferentes e melhores do que os demais. Então, cumpre-nos analisar e meditar nestes problemas para tentarmos encontrar as soluções possíveis. Pugnarmos, em suma, pelo desporto, na sua expressão mais pura e digna. Pugnarmos assim pela nossa própria dignidade. Parafraseando Joan Manuel Serrat, e cito de memória, espero que me saibam julgar pelas intenções das minhas palavras e não pela maneira como me consegui expressar.

Adversários, SIM; inimigos, NÃO.

Paixão, SIM; ódio, NÃO, NUNCA!

João Trindade – Sócio n.º 232 do Sporting Clube de Portugal

  Comentários
Mais Opinião