Lembro-me de ouvir a minha avó comentar, quando na década de 1980 se viam na televisão imagens horrendas de ataques da ETA em Espanha, que vivíamos no céu, em Portugal. Volto a ter o mesmo sentimento quando vejo reportagens de Itália e Espanha sobre o impacto social e económico deste tempo tão distópico como surreal e kafkiano (três adjectivos sinónimos) que vivemos, sem paralelo na história da humanidade. O estado de Nova Iorque, no riquíssimo país conhecido como a terra dos sonhos, já está a enterrar corpos, vítimas deste novo vírus que nos torna prisioneiros nas nossas próprias casas, em valas comuns, não apenas de pessoas cujos corpos não são reclamados, como daqueles cujas famílias não têm posses para cumprir os preceitos da última despedida.
Podia apresentar ainda mais casos de uma realidade que nos choca e que obrigou, um pouco por todo o Mundo, a que houvesse uma rápida adaptação às novas circunstâncias. Infelizmente, há sempre as excepções dos negacionistas, como a Bielorrússia, onde o presidente acusa os países que adoptaram medidas proteccionistas de sofrerem de psicose, afirmando que a pandemia pode ser resolvida com vodka e sauna. O português Denis Duarte, a jogar no Dínamo Brest, em declarações ao jornal A Bola, mostrou-se estupefacto com a reacção do país e, depois disso, foi proibido de falar mais à imprensa. E nem vale a pena voltar a bater no ceguinho do idiota eleito presidente do Brasil.
No entanto, por mais difícil que o exercício possa parecer, queria focar-me nos sinais que nos permitem acreditar numa “saída limpa” destes tempos negros, que ainda está na sua fase inicial em que a principal prioridade é a preocupação com a saúde. Já todos ouvimos, vimos, lemos ou discutimos pelas redes sociais – que nos tornou mais isolados em tempos normais, mas que agora, na verdade, nos juntam no sentido de comunidade virtual que sempre assumiu –, que o pior está para vir. O congelamento da esmagadora maioria da actividade económica terá consequências tão imprevisíveis como incomensuráveis.
Acredito que, por mais doloroso que possa ser o caminho que se avizinha, a humanidade saberá adaptar-se a este tipo de novas realidades. Podemos ser, de uma maneira geral, um pouco renitentes às mudanças, mas a forma tão brusca como todos fomos confrontados, obrigará à perda de hábitos tão enraízados, desde logo a maneira como nos cumprimentamos. Aliás, o primeiro-ministro António Costa foi vítima disso mesmo, quando apertou a mão ao ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, na quinta-feira, o que obrigou a um esclarecimento na conta do Instagram do Governo, com um mea culpa do líder do executivo numa espécie de pedido de desculpa, com direito a lavagem de mãos com desinfectante e tudo.
Fiquei fascinado com uma missa numa localidade perto de Valência, na qual o padre local encheu os bancos da igreja com fotografias dos seus paroquiantes, numa cerimónia emitida pela Internet. Ou ainda uma procissão em Cuenca que substituiu andores por ambulâncias e onde as pessoas, à janela, tocavam bombos e faziam a festa da ressurreição de Cristo como podiam.
Ontem, Sexta-feira Santa, percorri, por necessidade, à hora do almoço, a Segunda Circular e da rotunda do relógio à Escola Superior de Comunicação Social só vi um carro. Lembrei-me da cena do filme Vanilla Sky, quando Tom Cruise saiu à rua em Nova Iorque e não se via vivalma. Não foi uma sensação agradável, mas rapidamente lembrei-me que, apesar do cenário desolador, a razão era a melhor.
Também se tornou num lugar-comum a expressão de que nada será como dantes. Todos teremos de nos adaptar e é aqui que entra o verde de esperança. Está em curso a difícil negociação no que toca aos contratos de trabalho, com os esperados cortes salariais. Avizinha-se um verdadeiro imbróglio jurídico-laboral, e não apenas para o Sporting. Numa situação limite – porque já se percebeu que a realidade pode superar (e muito!) a ficção – imagino o nosso Clube a jogar, em maioria, com os miúdos formados na Academia, num cenário que já aqui referi como sendo uma alternativa mais do que natural à falta de liquidez que possa manietar a margem de manobra de gestão do futebol profissional. Outros já seguiram esse caminho, conseguindo reeguer-se e não se vivia num tempo disforme como este.
Uma última menção, em jeito de agradecimento, ao Bruno Nogueira e ao seu live ‘Como é que o Bicho Mexe?’ no Instagram. Todos os dias, a partir das 23 horas e durante 120 minutos, há uma espécie de catarse colectiva, na qual até a pianista Maria João Pires, a partir de Belgais, nos faz esquecer da loucura que corre lá fora. O próprio autor já admitiu que há uma gratificação – são sessões absolutamente altruístas – pelo calor humano que percorre a fibra (óptica) que nos liga a todos. E termina sempre com um: “Vai correr tudo bem”.
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