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HISTÓRIAS DO MEU PAI SPORTINGUISTA (I)
Não consta que alguma vez João Rocha tenha dito a algum dirigente de uma equipa adversária que lhe cortaria a cabeça, por mais razão que pudesse ter.
Imagem de destaque17 Jan 2020, 15:00

Não sei exatamente com que idade comecei a ir à bola com o meu pai. Talvez com cinco ou seis anos, há mais de 50. Levava-me ao velho José de Alvalade e às vezes a jogos de equipas que calhavam. Era árbitro de futebol, mas nunca assisti a um jogo arbitrado por ele. Quando atingi idade para isso, percebi porquê. Arbitrava sobretudo jogos dos escalões inferiores. Creio que a única vez que arbitrou na divisão principal foi em Moçambique. Arbitrar jogos nos escalões inferiores era atividade de alto risco para os árbitros; impensável levar os familiares aos jogos!

Lembro-me de o ver regressar a casa nos domingos à noite com monstruosas enxaquecas que nem com três aspirinas e uma tolha molhada na cabeça a noite inteira passavam. Imagino-o a remoer o penalty que tivera (ou não) a coragem de marcar contra a equipa da casa, a fúria dos jogadores, os empurrões, os impropérios da assistência. Os campos, às vezes pelados, sem vedação, a autoridade a fechar os olhos, as ameaças, as agressões. Cá fora, as esperas à porta do balneário, os pneus do carro furados se não tivesse ficado dissimulado e anónimo num canto longínquo, a pedra afagada pela mão de um adepto da equipa da casa, pronta a ser transformada em pedrada.

Em terras pequenas, num Portugal cinzento, deprimido e triste, muitas vezes era no campo da bola que se exprimia tudo o que se recalcava.

Os jogadores, operários ou trabalhadores da terra durante a semana, quando não simplesmente desempregados e desinteressados da escola, não se poupavam e não poupavam os adversários, às vezes sem bola, na confusão.

Os adeptos viviam apaixonados a contenda e aproveitavam para resolver rivalidades, frustrações, exasperações do dia a dia sem saída. Lutava-se dentro do terreno, lutava-se fora do terreno. Os árbitros eram os primeiros visados, mas rapidamente cada qual encontrava outros alvos para onde se virar.

Os dirigentes normalmente amplificavam o ambiente de guerra. Muitos eram empregadores com peso económico local e com dinheiro para comprar os equipamentos e as chuteiras para o Clube. Mas só isso os diferenciava dos jogadores, dos adeptos e dos árbitros: de resto era a mesma vida dura, a mesma falta de perspetivas e oportunidades, a mesma urgência de ganhar pelo menos ali, no campo de bola da terra, a todo o custo, mesmo que fosse necessário fazer valer o físico quando faltassem argumentos ou o curto vocabulário esgotasse os insultos.

Assim era há 50 anos, mais coisa menos coisa. Mas já então os clubes maiores, os que jogavam na primeira divisão, tinham a obrigação de fugir a isso. Não consta que alguma vez João Rocha tenha dito a algum dirigente de uma equipa adversária que lhe cortaria a cabeça, por mais razão que pudesse ter.

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