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OS PERCALÇOS DA NOSSA DIMENSÃO
Serviria para nos lembrar que foi o Sporting quem deu, de mão beijada, aos nossos rivais uma década de domínio no futebol português e europeu.
Imagem de destaque07 Mai 2020, 10:00

O Dr. Carlos Vieira trouxe-nos duas originalidades, nos seus últimos escritos, quando se referiu a Rafael Leão e a Eusébio. Se no primeiro caso a originalidade tem um sentido óbvio de proveito para todos os envolvidos, quando o tema é Eusébio, será mais difícil, para o comum adepto sportinguista discernir o alcance prático de tal ideia, ainda que o mesmo possa legitimamente existir.

Esta referência traz-me à memória uma história com contornos algo semelhantes, ocorrida em Inglaterra. Bill Shankly foi um irascível treinador escocês que resgatou o Liverpool da obscuridade de um escalão inferior, para o tornar num colosso de dimensão continental. Bill Shankly era, à data da sua retirada, o maior símbolo do poderio do Liverpool. Na cidade existe uma feroz rivalidade entre o Liverpool FC e o Everton FC e Shankly contribuiu, durante a sua carreira, para apimentar essa rivalidade. Ficou célebre a expressão “Liverpool are magic, Everton are tragic” (o Liverpool é mágico e o Everton é trágico). Se o escocês era um inimigo dos “toffees” (como também são conhecidos os evertonianos) pelas derrotas que lhes impunha, o sentimento atingia o limiar do ódio, pelos inapropriados comentários. Aquando da sua retirada, foi feito um inquérito de rua, na cidade de Liverpool, onde se procuravam reacções do público a uma decisão inesperada, tendo sido ouvido, por mais do que uma vez, “thank God he’s retired” (Graças a Deus que ele se retirou). É uma ideia corrente de que, na cidade de Liverpool, a maioria dos adeptos são do Everton, sendo o Liverpool FC uma potência maior fora dos limites da cidade e tendo uma maior base de apoio pelo país fora. Por essa razão, a parte azul da cidade parecia ganhar algum ânimo no futuro próximo. E se o Liverpool não deixou de ser uma potência nacional, na década de 80, o Everton ganhou 2 campeonatos, 1 FA Cup e 1 Taça das Taças, nesse mesmo período. É curioso que o Everton tem vários pontos de contacto com o nosso Sporting, como seja o facto de terem apenas um troféu europeu que, coincidentemente, é a mesma competição, entretanto, extinta, ou como seja o facto de o maior símbolo de cada clube ser o maior goleador da história dos campeonatos nacionais respectivos (Dixie Dean e Peyroteo).

Pois bem, após a retirada de Shankly, o Liverpool deixou de o acolher como um herói ou como um símbolo do seu sucesso. Deixou de ser bem-vindo a Melwood (local de treino do LFC) e acabou por ser comum vê-lo a assistir a jogos no Goodison Park (estádio do Everton e “casa” da selecção nacional no Mundial de 66) e até mesmo em Bellefield, no complexo de treinos do Everton. Na sua autobiografia está expresso que, nos últimos anos, Shankly foi melhor acolhido pelos responsáveis do Everton do que do Liverpool (“Over the last few seasons I have been received more warmly by Everton than I have been by Liverpool”).

Em suma, o “inimigo” número um do Everton era acolhido com simpatia e respeito. É certo que a mentalidade dos dois povos é muito diferente. E mesmo que não o fosse, longe vão os tempos em que Vasco Santana se declarava sócio do Sporting, do Belenenses e do Benfica por serem os melhores clubes de Lisboa. Hoje em dia, tal não seria bem visto por ninguém e seria, até, motivo para se ser destratado por um qualquer adepto de afecto mais extremo a um dos mencionados clubes.

Não posso adivinhar a intenção do Dr. Carlos Vieira, quando gizou tal ideia, mas não deixo de ver a ironia que seria publicitar que o maior catalisador da dimensão europeia do Benfica, nos anos 60, foi um rapaz que começou de leão rampante ao peito de uma camisola listada de verde e branco, numa nossa filial. Eles, sem nós, nada seriam! E nem seria preciso lembrar o atleta, quando é conhecido que, em 1940, tendo o nosso rival ficado sem campo para jogar, foi o Sporting Clube de Portugal que abdicou do arrendamento, que mantinha sobre campo conhecido como “Estância de Madeira”, para que o Benfica pudesse ter onde realizar os seus jogos. Curiosamente, os benfiquistas contam a história de maneira diferente, apenas dando conta que o Sporting teria abandonado o espaço em 1937, por ter arrendado o Estádio do Lumiar. Segundo me garantem, se é verdade que o Sporting deixou de utilizar a Estância de Madeira em 1937, por ter um novo espaço onde jogar, nunca deixou de manter o arrendado até, num gesto de boa vontade, ter abdicado do seu direito de arrendamento, em prol do rival.

A não contratação de Eusébio foi um primeiro momento de adiamento da dimensão europeia do Sporting Clube de Portugal, como uma potência dominante. Quando Futre partiu, vimo-lo ser o factor distintivo de uma equipa que ganhou a, então, Taça dos Campeões Europeus. E tivemos o terceiro momento, em que Mourinho nos fugiu por entre os dedos para ir construir uma equipa reinante na Europa. Na verdade, todos estes momentos resultam de decisões conscientes dos responsáveis do Sporting, no respectivo tempo. No caso de Eusébio, o Sporting não quis pagar para o ter, ao contrário dos nossos rivais. No caso de Futre, não se lhe quis pagar menos do que lhe era oferecido (o atleta pediu que o Sporting lhe pagasse uma verba inferior à que lhe era oferecida pelo FC Porto), tendo o mesmo partido. No caso de Mourinho, com “preto no branco”, os nossos dirigentes acobardaram-se na decisão que já tinham tomado e deram o dito pelo não dito. Isto para não repisar o episódio que nos retirou Peyroteo do nosso campo mais cedo do que todos os leões de então teriam gostado. No fundo, tudo se resumiu a dinheiro (com excepção do caso de Mourinho).

São demasiados traumas que nos tolheram o crescimento, mas há que viver com a aprendizagem de cada um deles e tentar seguir um enquadramento prático, que nos permita dar passos no sentido do sucesso, avaliando e tirando partido de todas as ferramentas que temos à mão.

Eu não teria o arrojo de impulsionar uma ideia de ter um espaço dedicado a Eusébio no nosso Museu. Mas tal, mais do que qualquer outra coisa, serviria para nos lembrar que foi o Sporting quem deu, de mão beijada, aos nossos rivais uma década de domínio no futebol português e europeu. Também serviria para lembrar que os cinco melhores jogadores da história do futebol português (Peyroteo, Eusébio, Futre, Figo e Cristiano Ronaldo), de uma maneira ou de outra, envergaram a nossa camisola.

Mas Eusébio traz mais à discussão, como seja o relacionamento com a filial. Daquele tempo, não tenho conhecimento de como eram geridas as relações com as filiais. Hoje em dia, tenho dúvidas de que exista uma relação virtuosa e proveitosa para o Sporting Clube de Portugal. Sendo eu filho de um lamecense e de uma covilhanense, onde os clubes de referência são, respectivamente, o Sporting Clube de Lamego (filial n.º 63) e o Sporting Clube da Covilhã (filial n.º 8), creio que me estava destinado nascer noutra cidade onde o verde e branco se fixou no seu formato mais poderoso.

Ao longo dos anos, no caso do Sporting da Covilhã, vi o clube passar por várias etapas e celebrar vários entendimentos com outros clubes que não o Sporting Clube de Portugal. Alguns atletas conhecidos passaram pela cidade da Covilhã, emprestados pelos seus clubes de origem, como são exemplos Pizzi, Rui Barros, Josué ou Abdoulay Ba.

Sendo o Sporting um clube de referência na formação e sendo cada vez mais difícil encontrar patamares competitivos, que desafiem os seus jovens a prepararem-se para a primeira equipa, vejo que as relações com as suas filiais podem ser uma forma de alcançar tal desiderato, assim como lançar uma teia de influência benigna sobre os agentes do futebol em Portugal, que não se baseie na pequena negociata.

Pensar uma relação simbiótica com as filiais deveria ser um passo incontornável no desenho de uma política de crescimento no futebol, com benefícios mútuos entre as instituições e com um enorme reflexo na imagem pública do Sporting Clube de Portugal, até como factor de cativação de novos adeptos. No fundo, as filiais consubstanciam a nossa dimensão nacional e não as deveríamos negligenciar, nem as deixar à mercê da estratégia de nenhum dos nossos rivais.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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