Soraia Quarenta
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27 Jun 2020 | 09:34

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Soraia Quarenta

Contudo, a história acabou por os julgar e, hoje em dia, são mais as estátuas que caiem, do que os baluartes que se mantêm.

A panóplia de temas existentes para a estreia como colunista do Leonino eram vários mas, nenhum tão adequado como o mais recente diploma que regula a criação do cartão do adepto, que, dá assim, o pontapé de saída para este espaço.


Foi publicada a Portaria 159/2020, de 26/06, que define as normas e regras de acesso e funcionamento do apelidado “cartão do adepto” (diminutivo de “cartão de acesso a zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos”).

E em que consiste tal cartão?


Alegadamente, será um cartão “especial”, feito para todos aqueles que se consideram “especiais” e que dá acesso a zonas com condições, também elas especiais, de acesso e permanência de adeptos (as denominadas ZCEAP).

Estas zonas são de natureza obrigatória, tendo de ser criadas por todos os promotores de eventos desportivos nos seus recintos, consistindo as mesmas em áreas específicas. Estas zonas são válidas para competições profissionais ou não profissionais, desde que em competições ou eventos considerados de risco elevado.


Este cartão é criado como uma das medidas previstas na Lei da Violência do Desporto, que irá entrar em vigor no início da época que se aproxima e, alegadamente, tem como escopo aplacar as situações de intolerância, violência, racismo e xenofobia no desporto (nunca, afinal, o plástico fez tão bem ao ambiente como aqui).

Contudo, nem tudo é um mar de rosas e as condições de acesso à “guest list da zona VIP” têm mais que se lhe diga… Se acha que já forneceu os seus dados pessoais em larga escala às autoridades governamentais e tem mais números de identificação do que dígitos na conta bancária, pense outra vez, porque, em troca de mais um cartão com mais um número, a APCVD (Autoridade Para o Combate à Violência no Desporto), vai pedir toda a sua identificação novamente, para a emissão do cartão “especial”.

Fazem-no, diz a portaria, ao abrigo da protecção de dados pessoais e do sigilo devido, mas permitem-se a partilha de alguns dos dados fornecidos com todos os promotores desportivos que considerem necessários (seja lá que abrangência tenha a expressão “considerem necessários”).

Fazem-no, diz a portaria, a Lei da Violência no Desporto, a APCVD e as demais entidades estaduais, como medida de prevenção à intolerância, xenofobia e racismo, mas não se inibem de praticar uma verdadeira discriminação para efectivar tais desideratos. Como se os fins justificassem todos os meios ou como se juntar um conjunto de pessoas numa área fosse acabar com todos os males do desporto.

Muitos são os exemplos históricos que demonstram que pegar num conjunto de pessoas, em função de determinadas características e reduzir o seu espaço de movimentação e liberdade em nome de um alegado bem maior, já foram consideradas legais e legítimas. Contudo, a história acabou por os julgar e, hoje em dia, são mais as estátuas que caiem, do que os baluartes que se mantêm.

E não fosse o condicionamento de pessoas, que são livres em todos os aspectos da sua vida (excepto o desportivo), completamente contrário àquilo que se tem como direitos, liberdades e garantias, o facto de tentarem encapotar tal forma de segregação como algo que é escolhido pelo adepto, é ainda um exemplo mais gritante da hipocrisia que se tenta passar em nome da segurança e de altos valores morais.

De facto, diz a portaria que o cartão do adepto é solicitado pelo próprio interessado, pelo que, à partida, não será imposto por ninguém. Porém, se a pessoa em questão quer ir para a ZCEAP, tem obrigatoriamente de o ter, independentemente de, por exemplo, ter um bilhete de época há mais de 10 anos para aquele sector. Se quiser continuar a assistir a um jogo de futebol no seu lugar habitual, terá de ter o cartão. A liberdade começa, assim, a ficar mais curta…

Também terá de pagar por tal cartão, ainda que não o queira, mas seja necessário, pelo que, além do custo que terá com o bilhete, também terá de suportar um com o cartão do adepto e suas renovações (ainda que se diga que o cartão tem uma validade de 3 anos).

Mais grave ainda e, por isso, deixamos como cereja no topo do bolo, é a tripla limitação que este cartão encerra, em termos de acesso ou impedimento às ZCEAP.

Primeiro que tudo, é um cartão obrigatório para todos os adeptos que são membros de GOA (aqueles que já têm mais um registo do que o comum dos cidadãos), mas quem não pertença a um destes grupos e queira ir para a zona específica também terá de o ter, contudo, nem pense em levar os seus filhos para tal zona, se os mesmos tiverem menos de 16 anos, pois que o acesso à mesma lhes está vedado, ainda que, na época passada, tenham estado sempre em tal zona, sem que nada de especial tenha acontecido.

Assim, condiciona-se membros de GOA a um espaço concreto, veda-se esse espaço a outros adeptos a não ser que tenham o bendito cartão e ainda se veda o acesso a famílias àquela zona, na medida em que os menores de 16 anos não poderão entrar.

Isto porque, como é bem sabido na nossa sociedade, racismo, xenofobia, intolerância e violência só acontecem em certas zonas e sectores tanto da sociedade em geral como na realidade desportiva e, se isto não é uma forma de discriminação só por si, então não conseguimos imaginar o que será.

Muito mais haveria a dizer sobre este cartão do adepto, mas, como o espaço é, também, exíguo, há que acabar, contudo sem deixar de fazer a seguinte consideração: este cartão visa criar zonas de segregação dentro dos estádios e recintos desportivos, indo totalmente contra os valores desportivos da inclusão. Visa afastar, rotular, separar pessoas por zonas e sectores, algo inconcebível em pleno século XXI. No entanto, o legislador acha que camuflando por detrás dos valores da tolerância e todos os outros que são apregoados, pode, ele próprio, mostrar-se intolerante e discriminatório, pois ele é, também “especial”.

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Soraia Quarenta
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Bruno Mascarenhas
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