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QUEM TEM TELHADOS DE VIDRO…
Existem regras que, quando não são acatadas pela maioria das pessoas, com a conivência das instituições, são normas que precisam de ser revistas, por serem elas que não estão adequadas à realidade.
Imagem de destaque13 Mar 2021, 13:39

Esta semana foi tão fértil em notícias sobre o Sporting, que nem se consegue decidir qual será o melhor tema para comentar. Entre mais processos disciplinares levantados a jogadores do Clube e a um dos dirigentes, é incontornável a situação de Rúben Amorim e a sua qualificação profissional.

Num dos artigos sobre o caso Palhinha, foi dito que se iria assistir a um braço de ferro pois que as instituições desportivas não gostam de ser chamadas à atenção pela justiça comum. Dúvidas houvesse…

Mas, quanto ao caso em causa: Rúben Amorim treinou o Sporting, como treinador principal (situação que, no presente, está completamente ultrapassada e daí a utilização do tempo verbal no passado) sem o nível exigido para tal (Grau IV). É verdade. Ponto. Tão pura e simplesmente verdade.

Agora, vem o próprio e o Clube acusados da prática de uma fraude por essa situação. Porque aparentemente, a PFP, a LPFP e a ANTF não sabiam desta atitude por parte do Sporting e do Rúben Amorim e foram vítimas de um engano, de um logro com o intuito de os ludibriar.

Isto porque Rúben Amorim foi inscrito como treinador adjunto, mas apresentado como treinador principal e actuou como treinador principal, segundo os indícios recolhidos.

Quanto à prova indiciária, toda a gente poderá ajudar as instituições “ludibriadas”: Rúben Amorim foi, tal como é, de facto, o treinador principal. Não é preciso investigar mais. Agora quanto ao facto de ter existido fraude, logro ou engano, já haverá muito que se lhe diga e muita prova a produzir por parte dos alegados enganados.

De facto, a lei nº 106/2019, de 06/09, que procedeu à primeira alteração à lei 40/2012, de 28/08, prevê que só treinadores de Grau IV poderão coordenar equipas técnicas pluridisciplinares e orientar praticantes nas etapas mais avançadas de desenvolvimento desportivo. Rúben Amorim, à data da sua apresentação, não detinha tal grau nem se encontrava a frequentar curso que o permitisse adquirir essa habilitação.

Significa isto que não poderia ser inscrito como treinador principal da equipa. Tal como não foi e tal como, a partir de então, não violou qualquer das normas que definem a exigência de um Grau IV para se treinar uma equipa principal: nas fichas de jogo consta como treinador adjunto, nunca deu indicações constantes para dentro de campo (indicações pontuais, toda a equipa técnica pode) e nunca compareceu a uma flash interview.

Fez todas as conferências de imprensa, porque não existe uma norma específica que obrigue a que seja o treinador de Grau IV a fazê-las e orientou, de facto, a equipa do Sporting, como é de conhecimento geral. Ainda assim, foi apresentado como treinador e ficou à vista de todos que seria ele a liderar a equipa do Sporting.

Então, em teoria, realmente poderá ter sido cometida uma fraude. Só que não… Para que haja uma fraude, tem de existir a intenção de actuar com logro, com engano e intenção de enganar terceiros (consta mesmo da definição de fraude apresentada na acusação).

A actuação de Rúben Amorim e do Sporting, em nada foi feita com essa intenção, muito pelo contrário, foi feita a céu aberto, para toda a gente ver e ninguém pode, em sã consciência, alegar que desconhecia essa situação. Isso sim seria actuar de má-fé.

Aliás, o contrato de trabalho celebrado foi apresentado a registo, algo que é obrigatório para a validade do mesmo, curiosamente, nas três entidades que agora invocam o logro: FPF, LPFP e ANTF.

Qualquer destas entidades podia, face à postura declarada do Sporting em apresentar Rúben Amorim como treinador principal e deste em assumir tal cargo, rejeitar o registo por incongruências ou pedir esclarecimentos adicionais face à forma como o treinador foi publicamente apresentado. Não o fizeram.

O treinador foi apresentado a 05/03/2020 e o contrato terá de ser apresentado a registo de seguida, sob pena de não produzir efeitos (art. 6º do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Liga e a ANTF) tendo a ANTF um prazo de 5 dias para certificar as habilitações exigidas pela regulamentação desportiva (artº 9º nº 2 do mesmo Contrato Colectivo).

Assim, tendo a ANTF ou qualquer outra das instituições que recebeu o contrato para registo, fundadas dúvidas sobre a natureza do mesmo, face que, desde o primeiro momento, foram públicas as funções que Rúben Amorim iria desempenhar, tinham, à sua disposição, os mecanismos legais que permitiriam, desde logo, actuar em conformidade.

Contudo, o contrato foi registado sem qualquer celeuma e, passados alguns dias, foi logo remetida a queixa que deu na acusação que todos conhecemos. Em direito, isto tem um nome: venire contra factum proprium, ou seja, ir contra uma conduta que foi tida pelo próprio anteriormente. E é punida como má-fé.

Da mesma forma, não se pode aceitar a teoria de fraude, numa prática que, ao contrário do que se clama agora, é pacificamente aceite, pelo menos, de há 16 anos a esta parte (Paulo Bento, 2005, também no Sporting e, a partir daí, dezenas de treinadores).

Em direito, existem certas condutas que, não sendo escritas, pela sua prática reiterada, transformam-se em regras, chama-se a isso costume. Ainda que aqui não se possa falar em costume em sentido próprio (pois tem de haver também um carácter de obrigatoriedade, que nesta prática com mais de uma década e meia, não se verifica), já se pode falar com toda a certeza num uso, que é exactamente o caso de práticas correntes, verificadas várias vezes e por todos aceites, sem carácter de obrigatoriedade.

Assim, não se pode falar em fraude perante um hábito, um uso, que simplesmente foi sendo utilizado ao longo do tempo, com o conhecimento e aceitação de todos. E não se diga que até têm existido mais denúncias e existem mais processos em curso, pois certamente não existem processos pendentes desde 2005 (já se estranha o facto deste ter levado um ano a sair da gaveta, mesmo em tempo de pandemia) e ainda que os mesmos existam, não afastam a conivência que existiu até aqui.

Não se defende com isto, o contorno às regras que foi sendo amplamente efectivado ao longo do tempo. As regras existem para ser cumpridas, caso contrário, não servem para nada.

No entanto, existem certas regras que, quando não são acatadas pela maioria das pessoas, com a conivência das instituições, serão certamente normas que precisam de ser revistas, por serem elas que não estão adequadas à realidade prática.

O correcto a fazer, aqui, mais do que punir alguém por algo que é feito de peito aberto por todos e que de todos é conhecido, seria alterar a regra ou, então, emitir um comunicado prévio dizendo que a prática tinha sido tolerada até aqui, mas dado que houve um aproveitamento excessivo por parte de algo que deveria ser excepção e não regra, não seria mais tolerada a partir deste momento, sendo que teria de ser observado o estrito cumprimento das regras em vigor. No entanto, é sempre muito mais engraçado arranjar um bode expiatório, para a redenção de pecados próprios.

Uma nota final para fazer uma comparação entre o caso Amorim e o caso Custódio. É necessário, primeiro que tudo, fazer o disclaimer em relação a este último caso: não se conhece o teor da acusação ou notificação elaborada, apenas que o mesmo não terá sido instruído como fraude como no caso em análise. E é exactamente isto que aguça a curiosidade, face aos factos em causa.

Segundo os elementos conhecidos, Custódio também foi apresentado em conferência de imprensa como treinador, porém, foi inscrito como delegado e figurou nas fichas de jogo nessa mesma qualidade.

Sporting e Amorim foram acusados com base no art. 133º do RD da Liga (falsas declarações e fraude), por remissão do art. 168º do mesmo RD. Contudo, Custódio e o seu clube não foram acusados pela mesma prática, ainda que esse mesmo art. 168º diga que o ilícito previsto no art. 133º se aplica a delegados, treinadores e auxiliares técnicos…

Como já vem sendo hábito, impõe-se a seguinte frase de despedida: o futebol é mesmo um mundo à parte…

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