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0A ameaça andava no ar há mais de duas décadas e esta semana, pela primeira vez, tomou forma: alguns dos clubes mais ricos da Europa anunciaram a intenção de avançar já com uma Super Liga privada, fora do domínio da UEFA, por não encontrarem na atual Liga dos Campeões a resposta às necessidades financeiras e competitivas.
Até agora, este movimento liderado pelos presidentes de Real Madrid e Juventus atuara sempre, e apenas, como fator de pressão junto da UEFA e a verdade é que as sucessivas alterações ao modelo Champions surgiram, uma vez após outra, como resposta a tais ameaças. Criou-se um figurino que garantia na competição pelo menos duas equipas das ligas mais fortes da Europa, depois passou para a possibilidade da entrada a um terceiro clube (playoff de agosto) das seis melhores Ligas, até chegarmos aos dias de hoje em que as quatro principais ligas (Inglaterra, Espanha, Alemanha e Itália) colocam diretamente na fase de grupos os quatro primeiros classificados, ficando o 5º e o 6º do ranking com a garantia de duas vagas mais uma (playoff). Os prémios monetários também cresceram de forma significativa, ao ponto de os finalistas da prova conseguirem encaixar verbas acima dos 150 milhões de euros.
Entre o momento em que os clubes de futebol começaram a ser adquiridos por investidores sem qualquer ligação emocional a esses mesmos emblemas ou desporto e o momento atual... era uma questão de tempo. O facto de estarem neste ‘clube privado’ os seis emblemas ingleses mais ricos não é acidental, mas apenas o resultado direto do tipo de investidores que compraram Man. City, Man. United, Chelsea, Tottenham ou Arsenal. Ou, já agora, podemos olhar também aos proprietários de Inter de Milão, AC Milan e Atlético de Madrid, o ‘novo dinheiro’ da China.
As Ligas ‘privadas’, com prémios garantidos na ordem das centenas de milhões, são o ‘sonho molhado’ de qualquer investidor. O desporto profissional nos Estados Unidos baseia-se nesse princípio tão querido à família Glazer, proprietária, por exemplo, dos Tampa Bay Buccaneers (NFL), último vencedor do Super Bowl, mas também do Manchester United. Para os Glazer, ter o Man. United a receber cerca de 300 milhões de euros/ano para participar na Super Liga europeia privada, mas ao mesmo tempo continuar a encaixar os cerca de 150 milhões de libras/ano, por entrar na Premier League inglesa, era o melhor de dois mundos, significava uma receita garantida um pouco abaixo dos 500 milhões de euros/ano. Até podiam começar a gerir o Man. United como Donald Sterling geriu durante muitos anos os LA Clippers (equipa da NBA): orçamentava o total das despesas anuais bem abaixo dos rendimentos garantidos (prémio de participação na NBA, mais bilhetes anuais e patrocínios), arrecadando milhões de dólares em cada um dos 33 anos em que foi proprietário da equipa, até ser banido em 2014 e ter ficado para a história como o pior gestor de desporto nos Estados Unidos (mas provavelmente o mais esperto a enriquecer à custa dos prémios monetários garantidos, porque desprezava os resultados desportivos).
Não sei se este movimento vai mesmo avançar, como ameaça, ou atuar uma vez mais como meio de pressão junto da UEFA. Numa coisa acredito que estou certo: uma liga privada de 15 clubes, na qual entrarão mais 5 a cada ano por convite (está escrito no manifesto de intenções deste grupo) é pouco provável que veja a luz do dia, por uma simples razão: basta a UEFA banir para sempre (ou por um período de 10 anos, por exemplo) das suas provas qualquer equipa que participe uma vez que seja nesta Liga para fazer pensar duas (ou três) vezes qualquer administração. Agora, se este ‘clube do bolinha’ conseguir ter de forma permanente as mesmas 20 equipas é bem provável que possa transformar-se numa realidade e numa Liga de sucesso.
Quando a UEFA diz ter na FIFA um aliado para impedir os jogadores desta futura liga privada de representar as Seleções, pode colocar-se a questão: por acaso os futebolistas da MLS (liga privada e fechada de futebol profissional nos Estados Unidos da América) estão a ter semelhante tratamento? Não. Então, como aceitar dois pesos e duas medidas? Fácil: a MLS é a liga de futebol profissional de uma só nação, dividida em 52 estados, não uma competição que junte equipas de diferentes nações. Ora, esta Super Liga agora anunciada só poderia ser de certa forma comparável à MLS se todos os participantes fossem oriundos de estados da União Europeia, e não são. Logo, a FIFA não poderá ser acusada de ter pesos e medidas diferentes.
Para já, FIFA, UEFA e as federações de Inglaterra, Espanha, Itália, Alemanha e França responderam a este movimento de forma dura e decidida. Mas antes de continuarem a atirar pedras uns aos outros, é bom que tenham o bom senso de parar um pouco e refletir sobre as consequências de uma ‘guerra nuclear’. Por exemplo: que suporte financeiro conseguirá a UEFA garantir para a Liga dos Campeões sem estes 12 clubes? Que suporte financeiro conseguirá a Liga Inglesa para a Premier League se não tiver na prova os seus seis principais clubes? Que suporte financeiro conseguirá a Liga espanhola sem os três emblemas de topo no campeonato? Em limite, que interesse terão, para os patrocinadores e adeptos, os Campeonatos do Mundo e da Europa de seleções sem a participação dos jogadores de elite?
Bem sei que é fácil, nesta questão, estar do lado do ‘normal’ e contestar este movimento de clubes ricos. Pensemos apenas nisto: no século 21, a FIFA só atribuiu Mundiais a países onde fossem construídos vários (ou a totalidade dos 10) estádios; a UEFA quase replicou o modelo de escolha dos países organizadores (exceção feita aos Euros 2016 e 2020). A explicação foi no sentido de criar estruturas desportivas modernas nesses países, e assim surgiram estádios sobredimensionados na Bélgica, Holanda, Japão, Coreia do Sul, Portugal, Polónia, Ucrânia, Brasil, África do Sul, Rússia e Qatar. Na verdade, o que sucedeu foi uma passagem pornográfica de milhões de euros e dólares para mãos corruptas, por força dos montantes gastos na compra de votos e obras (nestes últimos 20 anos as notícias disso e as condenações em tribunal por corrupção sucederam-se a grande velocidade, pelo menos nos países verdadeiramente preocupados com o fenómeno). FIFA, UEFA e dezenas de federações ganharam mais dinheiro neste século que em toda a sua restante existência. E no entanto fizeram-no sem pagar a mão de obra. Sim, a mão de obra no futebol são os jogadores pagos pelos clubes. Os grandes espetáculos da UEFA e da FIFA são feitos com artistas pagos pelos clubes. De há uns anos a esta parte os clubes passaram a receber umas migalhas pela participação dos jogadores em Mundiais e Europeus. E mesmo essas migalhas tiveram de ser reclamadas por este mesmo movimento de clubes.
Bem pode a UEFA dizer que 90 por cento do dinheiro recebido pela Champions reverte a favor do futebol (não necessariamente a favor dos participantes). Talvez seja chegado o momento de fazer esse montante reverter, sim, e excluindo os custos de organização, para os clubes que ano após ano possibilitam a existência da competição.
Gostava de concluir que no final tudo seguirá como até aqui, apenas com a UEFA a ceder mais uns milhões aos clubes da Champions. Mas desta vez estou mais pessimista. Porque os clubes limitam-se, neste caso, a replicar o mesmo modelo liberal desregulado já presente em quase todas as restantes atividades do nosso dia a dia. Como podemos ‘exigir’ ao futebol um modelo solidário, se não o fazemos a outras atividades bem mais importantes para a vida de todos?
P.S. Pedro Proença, presidente da Liga Portugal, já repudiou a possibilidade de existência de uma Super Liga europeia. Aposto que a seguir vai explicar como repartirá com os clubes os 7 milhões que o novo patrocinador da Liga pagará por cada um dos próximos cinco anos. Ou se calhar o melhor é esperar sentado por essa comunicação...