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0Portugal é, em muitos aspetos, um país de ‘virgens ofendidas’ ou ‘beatas de sacristia’, se preferirem. Gente que passa a vida a cometer ou a beneficiar de erros ou ilegalidades, mas nunca deixa de apontar o dedo aos outros; que faz julgamentos sumários sem ouvir as partes, mas acha-se injustiçado mesmo se apanhado em flagrante com o produto do roubo.
No futebol, por toda a exposição pública de que goza, tudo isto se torna ainda mais evidente. E os erros dos árbitros surgem como a grande força motriz que possibilita o movimento desta máquina extremamente pesada. A permanente ‘guerra de propaganda’ que se instalou no futebol português de forma mais evidente desde 2015 vive sobretudo disso e até foi (tem sido) muito fácil tirar proveito dessas emoções negativas dos adeptos porque, uns mais outros menos, todos fomos formatados a aceitar como verdade absoluta que os árbitros erram de propósito para prejudicar as nossas equipas (falando aqui principalmente nos três grandes, como é evidente). Quem pensa e diz que este clima é prejudicial ao negócio futebol, certamente desconhece que é precisamente o extremar de posições que eleva as emoções dos adeptos ao ponto de se disponibilizarem mais no apoio às suas cores. Basta analisar os números de bilhética e merchandising conseguidos pelos três grandes entre 15/16 e 18/19 para perceberem que assim é.
Como devem calcular, estes métodos são perversos e acabam por fazer vítimas. As primeiras são os árbitros, óbvio, mas volta não volta acabam por acontecer alguns danos colaterais. Ao longo dos anos (décadas, até), as pessoas ligadas à Comunicação Social foram quem mais se tornou no ‘dano colateral’. Fosse à mão de agentes diretos do futebol, fosse à mão de adeptos. A frustração do resultado de um jogo e a culpabilização do árbitro passam para o lado de fora dos estádios. E quem está ali mais à mão é... o jornalista ou o operador de câmara. Esta semana sucedeu em Moreira de Cónegos e só teve honras de abertura de noticiários porque houve imagem e som a testemunhar. E porque envolveu, ainda que de forma indireta, um clube grande, claro. Noutras ocasiões acontece sem esse testemunho direto e em clubes de menor expressão, logo o impacto fica perto do zero. Uma nota de repúdio por parte do Sindicato de Jornalistas, à qual quase ninguém presta atenção, e está feito. Nem a PGR abre inquéritos.
Antes de mais é bom que deixemos de ser hipócritas ao atirar pedras aos outros, quando todos os intervenientes neste ‘jogo’ têm telhados de vidro, instalados há várias décadas. Só que nos últimos anos passou tudo a ser mais ‘público’, logo com maior impacto.
Na génese desta questão está o clima de ódio aos árbitros, algo transversal aos adeptos de futebol (e os dirigentes antes de o serem já seguiam o jogo como adeptos), independentemente do emblema que defendam, independentemente do nível de escolaridade que possuam ou do êxito profissional e social de que gozem. Só que uns estão mais expostos na linha da frente, nas bancadas, enquanto outros estão resguardados nos camarotes (onde por vezes fazem figuras muito tristes) ou no aconchego do sofá onde as críticas ao árbitro acontecem em privado.
Aos que defendem uma regeneração no quadro de dirigentes do futebol, como forma de alterar este estado de permanente tensão, um conhecido benfiquista, Vasco Mendonça (ou Azar do Kralj, alcunha pela qual muitos o identificam) já respondeu de forma certeira, pelo que vou citá-lo: “Claro que há lugar para esta gente. Lugar cativo. Vitalício. O futebol português é, em grande medida, esta gente. Sem essa gente não sei sequer se haveria futebol português.” Não leio o “esta gente”, como algo negativo. Claro que o futebol português existiria, mas o FC Porto teria atingido tamanho êxito sem Pinto da Costa?, o Benfica teria conseguido reerguer-se desta forma sem Luís Filipe Vieira?, o Sp. Braga teria ganho tal dimensão sem António Salvador? E falo apenas destes nomes por serem aqueles a quem, de uma forma geral, os adeptos atribuem mais ações polémicas ao longo dos anos.
Não me agrada que nas redes sociais os adeptos do meu Clube, o Sporting, estejam de forma constante, e antes dos jogos, a considerar que a equipa vai ser ‘roubada’ pelo árbitro que foi nomeado (seja ele qual for). Mas, apesar de na época corrente o Sporting não ter nem mais nem menos queixas que os principais adversários, compreendo tal ‘estado de alma’, porque o mesmo foi forjado ao longo de décadas em que o normal era, realmente, ver o Sporting ser travado pelos árbitros. Essa mancha levará muitos anos a lavar, se é que alguma vez irá mesmo deixar de se ver no tecido associativo leonino.
Claro que também compreendo a frustração dos adeptos portistas. Afinal, foram tantos anos de ajuda extra que agora torna-se ‘estranho’ ver a regra do erro, à qual estavam imunes, aplicar-se-lhes de forma igual. Nisto do erro, gosto de ver a democracia em pleno: é igual para todos. Não gostava era quando essa ‘lei’ só se aplicava no caso das camisolas serem listadas a verde e branco.
Há poucos anos, acreditei, de forma ingénua é verdade, que o VAR contribuísse decisivamente para atenuar este clima de desconfiança permanente. Para mim era evidente: o árbitro não viu, ou não quis ver, mas o VAR corrigirá o erro através da visualização do lance a partir de vários ângulos. Hoje sinto-me frustrado e iludido. Afinal, parece que para desempenhar o papel de VAR são nomeados alguns dos mais incompetentes. Em vez de melhorar, tudo piorou. Porque se alguns adeptos ainda aceitavam o erro, por ser humano, agora fica muito difícil aceitar que o VAR não veja o mesmo que eu (neste caso, qualquer adepto). Olhemos ao Sp. Braga-Sporting: aceito que Artur Soares Dias não tenha percebido a gravidade da entrada de sola por parte de Fransérgio sobre a perna de Palhinha, por isso só deu amarelo. Já não aceito que o VAR não o alertasse para ver as imagens, porque era falta mais grave que isso. Agora vejamos o Moreirense-FC Porto: acredito que Hugo Miguel, do local onde se encontrava, não tivesse julgado como falta a ação de Abdu Conté sobre Francisco Conceição na área dos da casa, mas não aceito a incompetência do VAR ao não ver o óbvio, a falta para grande penalidade.
Este tipo de lances quando implicam com o resultado final geram frustração. E por vezes, infelizmente, a frustração gera agressão. Quase sempre verbal, menos mal, mas por vezes também física. Mesmo que a vítima nada tenha a ver com a história. É o lado irracional do futebol, que existe e existirá sempre, não se iludam.
Nós, sportinguistas, também já vimos este ano um momento dessa frustração. Foi em Famalicão e deu origem ao ‘onde vai um, vão todos’. Lá está, jogadores, treinadores e dirigentes entenderam que um erro do árbitro tinha custado a vitória e reagiram mal na zona dos balneários.
Durante algum tempo a Sport TV teve como política, a pedido da Liga, não mostrar cenas em que os jogadores ou treinadores estivessem pegados uns com os outros. Era para não dar uma imagem negativa do futebol português. Ou a forma hipócrita como os portugueses muito gostam de ‘esconder o sol com a peneira’. Ora, essa mesma Sport TV instituiu um programa logo após os jogos em que um personagem com curso de árbitro faz de VAR. Portanto, o canal que mais devia defender o futebol da Liga, é o mesmo que ajuda ao ‘desporto nacional’: julgar o árbitro. Compreendo a decisão. Afinal, o espaço televisivo para o futebol já é mais ocupado com questões de arbitragem do que qualquer outro assunto. Logo, a Sport TV limitou-se a fazer o jogo da concorrência, tentando ser, de alguma forma, mais educadora que acusadora. Mas a questão de fundo mantém-se: canais de TV e jornais continuam a amplificar de forma brutal os erros de arbitragem e querem ignorar que isso contribui de forma decisiva para formatar a opinião pública de que ‘a culpa é do árbitro?’. Na terça-feira, um jornal desportivo publicou uma frase de um adepto do FC Porto em que ele só diz isto: “Hugo Miguel é um vendido, foi comprado para roubar o FC Porto!’. Ora, o jornalista pode ouvir os adeptos que quiser, mas também tem de saber filtrar aquilo que é dito. Esta frase na boca de um dirigente seria de uma gravidade tal que teria de ser publicada para que daí pudessem resultar consequências para o autor. Na boca de um adepto é apenas uma idiotice dita num momento de frustração e mesmo que Hugo Miguel o tente processar o juiz vai decidir, como outros já o fizeram, que é ‘linguagem tida como normal no mundo particular do futebol’. Mas a verdade é que frases destas ajudam imenso a formar a opinião de outros adeptos.
Percebam: a ‘culpa’ não está nas televisões e jornais que fazem autênticas ‘autópsias’ ao trabalho dos árbitros. Não está no comportamento dos dirigentes, treinadores ou jogadores que são colocados em causa na sequência desses mesmos julgamentos errados por parte dos árbitros e VAR’s. Não lhes peçam que comam e calem. Tudo começa nos erros inadmissíveis que se sucedem nos jogos ou depois dos mesmos. De TODAS as equipas. Portanto, os presidentes da Liga e FPF em vez de andarem constantemente com discursos da treta a distribuir culpas e responsabilidades, que sejam honestos ao ponto de olhar para dentro das suas instituições, que identifiquem quem são os incompetentes nas áreas da arbitragem e disciplina e os substituam. Se não o conseguirem ou não o quiserem fazer, pelo menos tenham a decência de se calar, porque para conversas hipócritas já todos os adeptos deram.
Quanto aos árbitros: meus caros, percebam de uma vez por todas que se vocês não se ajudarem, ninguém o fará por vós.