LÁ VEM A CONVERSA DE ALIENAR A SAD
Vende-se a ideia como único caminho para chegar aos títulos; depois argumenta-se com exemplos estrangeiros absurdos, esquecendo o ‘pormenor’ do fair play financeiro. Quando ‘acordarem’, está feito.
Redação Leonino
Texto
11 de Maio 2020, 15:39

Na semana que passou o ‘bicho’ atacou em força. Não a COVID-19, mas sim aquele que promete corroer ainda mais a vida associativa do Sporting Clube de Portugal. Falo do ‘bicho’ que não descansará enquanto não ‘infectar’ a maioria dos Sócios do Sporting, levando-os a aceitar, em Assembleia Geral, o ‘remédio’ da alienação da maioria do capital da SAD. Não me espantou que fosse Tomás Froes a dar novo pontapé de saída, afinal o seu sogro, Carlos Barbosa da Cruz, já andava a falar sozinho sobre esta matéria há muito tempo. Nada como uma mãozinha familiar para dar empurrão a um tema que já lhes era querido desde a presidência de Soares Franco, quando este defendeu que os Sócios deviam limitar-se a pagar bilhetes e não ter qualquer palavra na gestão (a tal em que vendeu quase todo o património imobiliário – Alvaláxia, Edifício Sede, Clínica CUF e Holmes Place – por menos de 50 milhões de euros, única forma de terminar o mandato com saldo positivo em termos financeiros, em menos de dois milhões!). Agora, certamente sem qualquer interesse pessoal na jogada, a dupla Carlos Barbosa da Cruz/Tomás Froes vai trabalhar em colocar o ‘bicho’ no corpo dos Sócios. Não o conseguem? Não dava isso por garantido. Se, por um lado, a resposta pública do Sócio Samuel Almeida, no jornal O Jogo, tocou num aspeto essencial, o das implicações que tal traria para o Clube, como parte da justificação para não aceitar o plano, já Diogo Leitão, aqui no Leonino, abraçou a ideia da venda da SAD com grande entusiasmo. Eu, como convicto opositor a este passo, explico as minhas razões em três pontos, precisamente aqueles que são olimpicamente ‘esquecidos’ por Carlos B. Cruz, Tomás Froes e Diogo Leitão:

1 – COMPARAÇÕES ABSURDAS. Os que defendem a venda da maioria da SAD dão sempre como exemplo de sucesso o mesmo lote de clubes: Man. United, Man. City, Liverpool ou PSG. Acrescento que podem juntar à lista todos os clubes ingleses, uma vez que são pertença de um dono, ou conjunto de donos, em contraste com a opção associativa de Real Madrid ou Barcelona, dois exemplos dos quais se esquecem de forma constante, porque não dá jeito referir os clubes de maior sucesso financeiro e desportivo do Século 21. Tal como se esquecem do Málaga, equipa que atingiu os quartos-de-final da Champions em 2012/13, após o quarto lugar na Liga 11/12, e hoje anda pela Segunda Liga (a três pontos da descida quando o campeonato foi interrompido), porque o proprietário qatari, Nasser Al Thani, depois de comprar o clube por 36 milhões de euros, percebeu que existem mecanismos a nível da UEFA que o impedem de gastar verbas superiores a 35 milhões em relação às receitas geradas (e se gastar nesse limite, 30 milhões terão de sair do seu próprio bolso). Dar exemplos de clubes do top europeu para indicar o caminho aos Sócios do Sporting é apenas desonesto. Desde logo porque o que permite, dentro de um quadro legal, o crescimento financeiro dos clubes ou SAD’s é o aumento das receitas ordinárias e extraordinárias (transferências de jogadores) e não a injeção de capital através da venda da própria SAD (só provoca aumento direto de receita no ano de negociação das ações). Por outro lado, o que atraiu investidores a esses clubes de topo foi precisamente a capacidade, imediata e futura, que tais organizações tinham para gerar receitas e, por consequência, lucros avultados. Não só é absurdo comparar a escala do mercado inglês com o português (55 milhões para 10 milhões), como ainda o é mais quando falamos da escala de interesse gerado pelo futebol inglês, dado que a Premier League tem os direitos televisivos vendidos para uma enormidade de países estrangeiros, a troco de 4,6 mil milhões de euros, no período 2019/2022, verba que se junta aos 5,8 mil milhões de direitos de TV para o Reino Unido. É um bolo total superior a… 10 mil milhões (2,5 mil milhões/época). Em termos médios (mas a distribuição não é igual) daria 125 milhões de euros/ano a cada equipa, só pela Liga, excluindo verbas da Champions! Depois, em bilhética, os principais clubes ingleses facturam acima dos 50 milhões/ano (o Liverpool, por exemplo, ultrapassa os 90 milhões!) e em acordos comerciais (publicidade, patrocínios, venda de merchandising e venda de jogos particulares) as verbas médias dos principais clubes superam os 150 milhões/ano. Quando olhamos à tabela das maiores receitas ordinárias (sem incluir transferências de jogadores) dos clubes europeus em 2018/19, verificamos que os clubes da Premier League ocupam cinco posições, com o Man. United (711 milhões/ano) a liderar o grupo inglês, mas bem longe do Real Madrid (840 milhões/ano) e abaixo de Barcelona (757 milhões/ano). Entre os 20 que mais facturaram em 18/19, o último lugar é ocupado pelo Nápoles (207,4 milhões). Portugal nem ‘cheira’ o Top 20 e isso não se prende com melhores ou piores opções de gestão, com o facto das SAD’s serem maioritariamente dos clubes ou de um dono, mas tão-só com a dimensão do nosso mercado e do quase nulo interesse que a Liga NOS desperta para além de Badajoz. Com receitas desta grandeza, não se estranha que exista uma elite europeia capaz de orçamentar acima dos 500 milhões (o mais baixo) e mesmo gastando tanto dinheiro os seus proprietários ainda conseguem sacar dividendos brutais (o Liverpool teve lucros de exploração de 120 milhões de euros em 17/18, feito que deve repetir nas contas de 18/19, onde as receitas ordinárias subiram apenas 7 milhões). Parece-me que fica claro quão infeliz é antever ou prometer um Sporting tão grande quanto os maiores, caso se venda a SAD a um magnata, não lhe parece Diogo Leitão? Ah, já me esquecia: é que o Sporting, nos seus melhores momentos, tem receitas ordinárias na casa dos 90 milhões de euros/ano, às quais pode juntar (num bom mercado), entre 60 a 80 milhões em transferências. E tem um histórico de contas que se resume a isto: em 21 épocas, seis exercícios positivos contra 15 negativos, tendo obtido o maior resultado líquido da história em 2016/17 (30,5 milhões). Com Capital Social de 67 milhões (cerca de 43 milhões detidos pelo Grupo Sporting, podendo ultrapassar os 80 milhões em caso de aumento de capital por força da aquisição das VMOC) e os números anteriormente expostos, a maioria da SAD valeria quanto? Resolveria alguma questão estrutural? Claro que não.

2 – FAIR PLAY FINANCEIRO. O investidor (ou investidores) compra a maioria da SAD e investe forte para tornar o Sporting campeão. Em resumo, é o que ‘promete’ Tomás Froes. Seria honesto da parte dele explicar como poderia o ‘dono’, como escreve, fazer esse investimento sem entrar em conflito com o fair play financeiro da UEFA. Para quem está fora do assunto, resumo: este mecanismo de controlo da UEFA entrou em vigor, no modelo que hoje conhecemos, em 2013 e obriga os clubes, ou sociedades desportivas, a garantirem no mínimo o ‘break-even’ da gestão anual, significando isso que não devem gastar mais do que aquilo que conseguirem gerar em receitas, sob pena de entrarem em incumprimento, sendo então sancionados com um dos nove níveis penais existentes. O controlo é feito em ciclos de três épocas desportivas e nesse período o clube só pode gastar mais cinco milhões do que o total das receitas (por exemplo, pode gastar mais cinco milhões numa temporada, se nas outras duas igualar despesas com receitas). Pode ainda, no mesmo período, exceder as receitas em 30 milhões (10 por ano, por exemplo), desde que essa verba esteja inteiramente coberta por um pagamento por parte do próprio clube (tem de possuir capitais para o fazer) ou do seu proprietário. O Sporting, por exemplo, no triénio 12/13 a 14/15 esteve sob vigilância apertada da UEFA dado o resultado negativo de 43,8 milhões de 12/13, o qual por si só já excedia o valor máximo de perdas permitido pela UEFA. Como nos dois anos seguintes as contas da SAD resultaram num lucro de 20 milhões, a UEFA ‘libertou’ a Sporting, SAD sem outras sanções. No triénio seguinte, 15/16 a 17/18, o acumulado voltou a ser negativo, na ordem dos 20 milhões, ainda assim dentro dos parâmetros dos tais 35 milhões permitidos. Depois existe uma outra ‘nuance’: desde 2015, os custos relacionados com investimentos em estádios (ou sua melhoria), centros de treino, formação de jogadores e futebol feminino não entram na coluna das despesas para efeitos de apuramento do resultado de gestão. Como já expliquei, existem nove níveis de penalização: advertência; repreensão; multa; dedução de pontos; retenção das receitas de uma competição da UEFA; proibição de inscrição de novos jogadores na competição da UEFA; restrição ao número de jogadores a inscrever na prova da UEFA, incluindo um limite financeiro sobre o custo total de despesas com salários dos jogadores inscritos na lista A; desqualificação das competições a decorrer e/ou exclusão de futuras competições; retirada de um título ou prémio. Por exemplo, ao Manchester City foi atribuída, no passado mês de fevereiro, a maior penalização até hoje aplicada a um clube: exclusão das provas da UEFA nas épocas 20/21 e 21/22, mais 30 milhões de multa, por ter inflacionado receitas de patrocínios entre 2012 e 2016, no valor de 140 milhões de euros. Todas essas verbas foram canalizadas para o clube através de empresas detidas por Mansour Bin Zayed, o proprietário do Man. City, e a ‘marosca’ foi descoberta através da averiguação de documentos colocados no Football Leaks. Ou seja, o investidor, na ânsia de fazer chegar o City ao patamar mais alto da Premier League, tentou contornar as regras do fair play financeiro através da injeção ‘camuflada’ de dinheiro na equipa. Ganhou quatro campeonatos ingleses… mas foi apanhado pela UEFA e agora paga a fatura. O PSG andou anos a cometer erros de natureza semelhante e também já teve uma sanção de 30 milhões em 2014, para além de ter sofrido restrições na inscrição de jogadores nas provas da UEFA. O financiamento através de patrocínios inflacionados era feito por empresas do Qatar, país que na prática é o verdadeiro proprietário do PSG através da QSI (Qatar Sport Investment). Depois de novamente apertado por novas investigações na sequência das contratações de Neymar e Mbappé, Nasser Al-Khelaifi, o rosto da QSI no PSG, mudou de estratégia e encontrou forma do grupo hoteleiro Accor tornar-se no patrocinador das camisolas da equipa, a troco de 50 milhões de euros/ano (o quarto maior patrocínio de camisolas no Mundo). Se o City, de forma encapotada, recebeu 140 milhões em cinco anos, agora, às claras, o PSG no mesmo período encaixará de forma legal… 250 milhões. E sabem quem é um dos principais accionistas da cadeia Accor? Precisamente a QIA (Qatar Investment Authority), cujo dono é o… Qatar. Toda esta extensa explicação para sublinhar que a ideia de chegar ao Sporting um investidor com a missão de meter na SAD o dinheiro que será a solução para chegar ao título, através da aquisição de uma ‘grande equipa’ é impraticável, a não ser que o Sporting não se importe de ser excluído das provas da UEFA, e nesse caso o mecenas aceita meter dinheiro a fundo perdido. Alguém ‘compra’ uma história dessas? Bom…

3 – IMPLICAÇÕES PARA O CLUBE. Ao contrário dos já referidos Man. United, Man. City ou Liverpool, o Sporting, tal como Benfica, FC Porto e, já agora, Barcelona, não é apenas um clube de futebol, ou seja, tem muito mais actividade para além do desporto rei. Era esse o ponto bem levantado pelo Sócio Samuel Almeida em O Jogo de ontem. Para alimentar esse eclectismo precisa de receitas. Na verdade, entre 15 a 20 milhões para toda a atividade do Clube. Tal verba só é possível de atingir porque são para aí canalizados todos os anos os proveitos totais com a venda de quotas (no melhor ano da história chegou aos nove milhões), mais as verbas da cedência de exploração da Sporting TV. Vamos imaginar, por um momento, que o ‘dono’ da SAD nem iria reclamar o retorno destas verbas, ou de parte delas, para o futebol (afinal, a esmagadora maioria dos Sócios são-no precisamente devido ao futebol, deixemo-nos de lirismos). Mas não duvido de duas medidas que tomaria em simultâneo: primeiro, a de vender Gamebox a adeptos e não em exclusividade aos Sócios, afinal não são esses que lhe financiam a atividade. Era, na verdade, a prática da SAD até à época 13/14 e viu-se como o número de Sócios aumentou assim que os adeptos deixaram de ter acesso ao produto. Se voltarem a ter a possibilidade de adquirir o bilhete anual sem pagar 156 euros de quotas (categoria A), continuarão a ser Sócios? Muitos, não duvido, deixarão de o ser. E assim, ano após ano, processo mais lento ou rápido, iremos assistir ao inevitável desaparecimento das principais modalidades. O que no Sporting também não é novidade. Por isso, a questão não é o que fazer com a SAD, mas sim o que fazer com o Clube. Porque este será sempre o primeiro dano colateral da hipotética venda da SAD. Até porque sem ter palavra a dizer sobre o sentido da gestão, o Sócio passará a ser apenas o elemento que paga bilhete, como tanto queria Soares Franco, e talvez por isso tenha terminado o mandato com cerca de 40 mil Sócios pagantes… É a esse patamar que queremos voltar? Depois há a segunda medida que todos os novos donos de clubes acionam de imediato, para justificar os ‘investimentos’, que é o inflacionamento do preço dos bilhetes anuais. Como o Sporting, em termos médios, já tem os bilhetes mais caros da Liga, tal medida teria tudo para dar certo…

4 – CONCLUSÃO. Se há lição que podemos tirar de tudo aquilo que aconteceu com Bruno de Carvalho é que 20 ou 30 figuras do universo leonino, alinhadas na mesma ideia, conseguem, com a ajuda de televisões e jornais, manipular a maioria dos sportinguistas. Na verdade, 20 ou 30 figuras, seja da área política, económica ou outra, desde que alinhadas na mesma ideia, conseguem manipular a opinião pública de Portugal se contarem com o auxílio dos media. Porque a quantidade daqueles que querem ser esclarecidos e procuram ouvir os dois lados em conflito, é sempre menor do que o grupo maioritário para quem o que se diz na TV é ‘a’ verdade. E neste tipo de processos, os canais muitas vezes fazem de conta que não sabem qual a posição dos comentadores sobre os assuntos para os quais foram convidados a pronunciar-se, apesar de, por coincidência, o A dizer o mesmo que o B, que complementa a ideia do C… Não fosse o caso de o texto já estar muito longo e até colocava aqui a lista dos muitos nomes que, chegado o momento, vão fazer fila à porta dos estúdios de televisão para vender como excelente medida a entrega da maioria do capital da SAD a um investidor, seja ele qual for. E acho que nem preciso de referir qual o grupo de comunicação social que se apresentará como ponta-de-lança desta lavagem cerebral. Afinal, Bruno de Carvalho não era um terrorista? Não tinha sido o mandante do ataque à Academia? Não era, pelo menos, o autor moral do crime? Claro que era. Se não o será para o Tribunal, pelos menos para os comentadores dos canais televisivos e para alguns ‘jornalistas’ não deixará de o ser. Por isso, a venda da SAD não passará a ser uma boa ideia? Oh, se passará! Cá estaremos para ver.

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